quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

As redes sociais tornam a política impossível

O texto a seguir é do argumento nove do livro "Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais", de Jaron Lanier.
Aproveitem a leitura enquanto é possível!




QUEIMA DE ARCO
Havia um arco moral na história, evidenciado por Martin Luther King, Jr.: a justiça se tornou mais ampla com o passar do tempo. Em determinado período, escravos foram libertados; em outro, mulheres passaram a votar; depois, a população LGBTQ conquistou direitos e respeito. A democracia se espalhou por um número cada vez maior de países.
Recentemente, na era Bummer [NOTA: o autor chama de Bummer todas as redes sociais que buscam manipular o comportamento dos usuários, como Facebook, Twitter, Instagram, Yelp, Huffpost, e afins, ou como ele mesmo diz "Impérios de modificação de comportamento"], o arco está mostrando sinais de que vai desmoronar de maneira fragorosa. Não há apenas retrocessos à medida que subimos no arco, mas quedas impensáveis, catastróficas.
Nos últimos anos, Turquia, Áustria, Estados Unidos, Índia e outras democracias elegeram líderes de tendência autoritária cujo poder se apoia em tribalismo. Em cada caso, a Bummer exerceu um papel proeminente. Espero, sinceramente que, os nossos tempos sejam lembrados como um pequeno erro de trajeto em uma progressão até então suave para um mundo mais democrático.
Mas por enquanto enfrentamos uma crise assustadora e repentina. Antes da era Bummer, o raciocínio geral era de que, depois de se tornar democrático, um país não apenas continuava democrático como fortalecia cada vez mais seus valores em prol da democracia, porque seu povo exigia isso.
Infelizmente, isso deixou de ser verdade, e esse fenômeno só foi ocorrer há bem pouco tempo.
Algo está afastando os jovens da democracia. Apesar das autocongratulações otimistas das empresas de mídia social, parece que quando a democracia enfraquece, o mundo on-line se torna um antro de feiura e desonestidade.
A correlação pode ser ainda mais forte em regiões em desenvolvimento. O simples acesso à tecnologia de informação, como a capacidade de enviar mensagens por telefone, provavelmente contribuiu para a maravilhosa e histórica redução da pobreza extrema no mundo ao longo das últimas décadas. Porém, mais recentemente, a mídia social comercial apareceu e os telefones se tornaram propagadores de uma violência social maníaca.
Uma das maiores catástrofes dos direitos humanos no mundo - que se desenrola enquanto escrevo - é o drama da população rohingya em Mianmar. Pelo que se constata, essa crise correspondeu à chegada do Facebook, que foi rapidamente inundado por posts ofensivos direcionados contra os rohingya
Ao mesmo tempo, mentiras sobre rapto de crianças - nesse caso principalmente no WhatsApp, do Facebook - desestabilizaram partes da Índia depois que viralizaram. De acordo com um relatório das Nações Unidas, as redes sociais também são uma arma maciçamente mortal, literalmente, no sul do Sudão - por causa dos shitposts.
Autores misteriosos enchem os feeds das redes sociais de alegações bizarras de maldades - como se fossem variações do libelo de sangue - supostamente perpetradas por um grupo-alvo. Os memes para estimular genocídio com frequência relatam algo terrível que dizem ter sido feito a crianças. Como sempre acontece com a Bummer, as mensagens mais horríveis e mais paranoicas recebem mais atenção, e as emoções crescem de maneira desordenada como um subproduto do engajamento que cresce descontroladamente.
Todas essas regiões tiveram problemas antes. A história está repleta de políticos estranhos, maus ou loucos. Também está cheia de histerias coletivas e ilusões de turbas violentas. E de países que fracassam. Estamos realmente em tempos excepcionais?
Só futuros historiadores poderão dizer. A mim parece que algo deu errado e ganhou um caráter sinistro em nosso mundo, e isso aconteceu de repente, nos últimos anos, com a chegada da Bummer. Não é que estejamos vendo horrores sem precedentes - eles têm precedentes -, mas que o precioso arco da melhora se reverteu. Estamos degringolando de maneira terrível e repentina.
A história típica das redes sociais na política é assim: um grupo de jovens modernos e instruídos entra em uma plataforma primeiro, porque essas coisas saem do mundo moderno, jovem, instruído. Eles são idealistas. Podem ser progressistas, conservadores ou qualquer coisa. Eles querem sinceramente que o mundo seja melhor. Isso vale tanto para os tecnólogos que fazem uma plataforma Bummer quanto para as pessoas no mundo que a usam.
São bem-sucedidos no começo, com frequência obtêm sucessos espetaculares, maravilhosos, mas depois tudo azeda, como em um passe de mágica. A Bummer acaba alimentando mais imbecis gritalhões e trapaceiros do que para os grupos iniciais de idealistas modernos, jovens instruídos, porque a longo prazo a Bummer é mais apropriada à manipulação sorrateira e malevolente do que a qualquer outro propósito.
Por sua própria natureza, sem que haja um plano maligno em marcha, a Bummer estuda os idealistas do início e cataloga suas peculiaridades. Os resultados têm o efeito não intencional de alinhar os idealistas de modo que a eles possam ser direcionados shitposts que estatisticamente os tornam só um pouco mais irritáveis, um pouco menos capazes de se comunicar com pessoas diferentes, portanto um pouco mais isolados e, depois de tudo isso, um pouco menos capazes de tolerar políticas moderadas ou pragmáticas.
A Bummer está minando o processo político e machucando milhões e milhões de pessoas, mas muitas dessas mesmas pessoas estão tão viciadas que tudo o que elas podem fazer é exaltar a Bummer porque podem usá-la para reclamar das catástrofes que a própria plataforma acabou de provocar na vida delas. É como a síndrome de Estocolmo ou como estar preso a um relacionamento abusivo por cordas invisíveis. Os idealistas amáveis do início perdem, o tempo todo agradecendo à Bummer por como ela os faz se sentir por como os uniu.


PRIMAVERA ÁRABE
A Primavera Árabe foi uma ocasião para autocongratulações sinceras no Vale do Silício. Na época, reivindicamos aquilo como sendo uma glória nossa. A "Revolução do Facebook" e a "Revolução do Twitter" foram tropos comuns na época
Nós nos juntamos diante de telões para assistir aos jovens na praça Tahrir, no Cairo, enfrentando um governo despótico e nos apaixonamos. Comemoramos quando cidadãos comuns usaram as redes sociais para dizer às forças da Otan onde mirar seus ataques aéreos. As redes sociais puseram um exército moderno na ponta dos dedos de usuários comuns.
Outras revoluções já haviam acontecido, mas algo era diferente dessa vez.
Não havia nenhuma figura carismática em particular, por exemplo. Não havia nenhum George Washington ou Vladimir Lenin. Achamos que ali estava uma revolução verdadeiramente do povo. Não havia generais debruçados sobre grandes mesas com mapas enquanto subordinados ao redor se movimentavam apressados. Não havia nenhum manifesto unificado, nenhum acordo geral nem mesmo uma discussão especialmente focada no que viria depois da revolução. O termo "democracia" foi lançado, mas houve pouca discussão sobre o que significava. A democracia foi confundida com uma tênue fé de que a dinâmica coletiva on-line levaria a um mundo melhor. Uma revolução auto-organizada não poderia dar errado. Achamos que ali estava a realização de nossa fé nas redes de comunicação.
Eu, particularmente, não tive tanta certeza assim. Alguns amigos ficaram irritados comigo quando perguntei: "Onde todos esses garotos vão conseguir emprego?" Ou, ainda pior: "Será que o Twitter ou o Facebook vão arrumar emprego para esses garotos?" Também reclamei que uma revolução pertencia àqueles que a realizavam e que era errado associá-la a nomes de empresas do Vale do Silício.
Bem, ninguém arranjou emprego para eles e, de fato, não havia ninguém por perto para reivindicar o poder no Egito com coerência além de extremistas teocratas, que em seguida foram expulsos por um golpe militar. E quase nenhum dos jovens inspiradores que protestaram tem um emprego decente.
O que as redes sociais fizeram na época, e o que sempre fazem, foi criar ilusões: de que é possível melhorar a sociedade apenas pela vontade, de que as pessoas mais sãs serão favorecidas em disputas difíceis; e de que, de algum modo, o bem-estar material simplesmente surgirá.
O que na verdade acontece, sempre, é que as ilusões se desfazem quando já é tarde demais, e o mundo é herdado pelas pessoas mais rudes, mais egoístas e menos informadas. Quem mais se machuca é qualquer pessoa que não seja uma babaca.
Portanto, eu era o cético, mas o que se constatou foi que meu ceticismo nem de longe era o bastante. Ninguém quis associar a marca de sua empresa de tecnologia ao que aconteceu em seguida.
Já houve reações a revoluções antes, bem como apropriação e corrupção de revoluções, reinados de terror e muitas outras disfunções. Mas algo foi diferente dessa vez.
Um fenômeno disseminado de terror niilista em rede se espalhou violentamente. Jovens estavam assistindo aos vídeos mais horríveis, sádicos, transmitidos para eles por empresas do Vale do Silício, e a dinâmica foi como pornografia. Os garotos se tornaram viciados em atrocidades. Isso com certeza já acontecia com bastante frequência, mas antes era organizado. Gangues já haviam controlado muitos campos de extermínio da história, mas agora indivíduos estavam se "autorradicalizando".
Um personagem masculino solitário se tornou familiar, empertigando-se em um mundo inventado, limitado pelas ilusões mais mesquinhas, cheio de uma raiva insegura.
Mas a fé do Vale do Silício na rede social como ferramenta de melhoria da sociedade não foi abalada. Ela ainda vive em mim. Enquanto escrevo, no primeiro dia do ano de 2018, o regime iraniano está bloqueando as redes sociais para suprimir protestos que estão estourando no país. Uma voz dentro de mim clama: "isso! Isso! A tecnologia on-line está ajudando pessoas a se organizar, e elas terão a inteligência de contornar as tentativas de impedi-las."
Não quero desistir dessa esperança. Nenhum de nós quer. Mas as evidências até agora não são animadoras.


GAMERGATE
Fiquei animado quando mulheres começaram a falar na comunidade dos games. O mundo dos games é maravilhoso em muitos aspectos, mas realmente não está fazendo jus ao seu potencial. Os games deveriam estar se tornando a nova maneira de aprendermos e falarmos sobre questões complicadas. Isso até acontece em uma pequena proporção, mas as maiores produções tendem a mirar repetidamente no mesmo grupo demográfico. Você recebe armas, atravessa um terreno e atira em alguma coisa. Vez após outra. A indústria precisa expandir seus horizontes.
Programadores que acharam que os games deveriam se ampliar dessa maneira fizeram uso das redes sociais para comunicar suas ideias e criaram um movimento vibrante, distribuído. Eles ganharam atenção e dava para sentir a atmosfera mudar um pouco. Muitos desses programadores eram mulheres.
O que aconteceu em seguida foi uma versão "primeiro mundo" daquilo que ocorreu com a Primavera Árabe. A reação foi impressionantemente extrema e desagradável, de uma ordem de grandeza diferente daquilo ao qual estavam reagindo.
Mulheres que falavam sobre games foram atacadas de maneiras cruéis que se tornaram, desde então, uma rotina pavorosa. Elas foram bombardeadas com imagens falsas delas próprias e de suas famílias sendo assassinadas, estupradas e assim por diante.
Suas informações pessoais foram divulgadas, forçando algumas mulheres a se esconder.
O movimento para destruir os críticos do mundo dos games foi chamado de "Gamergate". É impossível falar com algum apoiador dessa iniciativa, porque eles vivem em um universo alternativo de teorias da conspiração e em emaranhados densos de argumentos estúpidos fomentados pelas ilusões mais mesquinhas, explodindo de uma raiva que é puro fruto da insegurança.


LGBTQ
Nos anos imediatamente anteriores à eleição de 2016 nos Estados Unidos, leis sobre questões LGBTQ começaram a mudar. O casamento de pessoas do mesmo sexo foi legalizado, transsexuais se expuseram mais e foram mais aceitos. As redes sociais sem dúvida desempenharam um papel nisso.
Mas esse foi apenas o primeiro estágio do processo de degradação da Bummer. Pode-se dizer que foi a lua de mel da máquina. Pessoas bem-intencionadas venceram uma etapa historicamente suave da luta, e parecia que qualquer nível de melhoria da sociedade com o qual se pudesse sonhar seria de fácil alcance.
Isso é como uma onda de heroína, conforme me foi descrita; uma explosão de êxtase incrível, fácil, depois da qual você inevitavelmente desaba de maneira catastrófica.
O estágio seguinte da política Bummer é aquele em que os babacas percebem que são favorecidos pela máquina. Aparece todo tipo de idiota. Eles recebem tanta atenção que passam à frente das pessoas bem-intencionadas que acabaram de conquistar suas vitórias. Desenterram preconceitos e ódios que passaram anos sem ver a luz do dia e tornam esses ódios a tendência dominante.
Depois acontece de babacas ainda maiores manipularem os babacas do início. A partir daí, coisas terríveis entram em cena. Imbecis pavorosos, gigantes, são eleitos, projetos xenofóbicos estúpidos são exaltados, pessoas comuns sofrem enormes perdas materiais desnecessárias, em uma conjuntura propensa a conflitos e guerras.
No caso dos Estados Unidos, figuras anti-LGBTQ incrivelmente radicais foram alçadas aos mais altos cargos, embora a dignidade e as questões de direitos LGBTQ nem sequer tenham sido discutidas durante as eleições.
Não é que a Bummer desfavoreça os LGBTQ. Na verdade, ela não se importa nem um pouco, apenas favorece trapaceiros e imbecis.


NEM ESQUERDA NEM DIREITA, PARA BAIXO
A Bummer não é progressista nem conservadora; é apenas a favor da paranoia e da imbecilidade generalizadas. 
Lembre-se, a Bummer não é assim no começo. No início, os primeiros membros, ainda na fase de estruturação, parecem receber um impulso. Porém, depois que essas pessoas decentes são categorizadas, investigadas pelos algoritmos, testadas e preparadas para a manipulação, os babacas tomam conta.
Quem se importa se eu sou progressista? Se você é um conservador com princípios, acha que tem sido realmente bem servido pela Bummer? Meus amigos conservadores evangélicos se veem de repente enfiados em comunidades nas redes sociais que apoiam um mulherengo ofensivo obsceno e abusador que ganhou fortunas em apostas e falências e que afirmou, oficialmente, que não precisa nem busca o perdão de Deus. Enquanto isso, meus amigos conservadores linha-dura, patriotas, veem-se agora alinhados com um líder que quase certamente não estaria no poder se não fosse por intervenções cínicas e ilegais de uma potência estrangeira hostil. Veja o que a Bummer fez com o seu conservadorismo.
A mesma coisa acontece com progressistas. Você se lembra dos Bernie Bross e de como se tornou bacana, em alguns círculos de esquerda, ridicularizar cruelmente Hillary Clinton, como se fazer isso fosse uma religião? Na era Bummer, não dá pra saber o que foi orgânico e o que foi maquinado.
É uma questão aleatória que a Bummer tenha favorecido os republicanos em detrimento dos democratas nos Estados Unidos, mas não é aleatório que essa máquina tenha favorecido os republicanos mais irritáveis, autoritários, paranoicos e tribais.
Todos esses atributos estão igualmente disponíveis na esquerda. Uma versão americana de Hugo Chávez, se tivesse existido, poderia ter se tornado presidente. Talvez isso aconteça no futuro. Eca.
Mesmo mais alinhado com a pauta progressista não acho que um líder estilo Bummer de esquerda seria melhor do que Trump. Degradação é degradação, qualquer que seja a direção de onde venha.
As maneiras como um candidato "artista do desastre" pode ser preferido pelo Facebook são bem conhecidas, embora os detalhes permaneçam difusos. Quando um candidato, ou qualquer outro cliente, compra acesso à atenção do usuário por meio da plataforma, o número de acessos não é determinado apenas pelo quanto é gasto, mas pelo modo, determinado por algoritmos, como o cliente também está promovendo e aumentando o udo do Facebook. Pessoas que trabalharam na estratégia de mídias sociais da campanha de Trump alegaram que ele ganhou centenas de vezes mais acesso´por um determinado gasto do que a campanha de Clinton, embora o Facebook alegue que não foi bem assim, sem revelar o suficiente para aclarar a história. Se havia um multiplicador, este provavelmente foi aplicado a compras de acesso realizadas tanto por agentes russos e outros grupos pró-Trump quanto pela campanha de Trump diretamente. Os algoritmos não podem se importar e não se importam.
Um detalhe interessante que veio à tona um ano depois da eleição é que o Facebook oferecera às campanhas de Clinton e Trump equipes presenciais para ajudá-los a maximizar o uso da plataforma, mas só a campanha do republicano aceitou a oferta. Se houvesse concordado em ter funcionários do Facebook em seu escritório, talvez Clinton tivesse vencido. A eleição foi tão apertada que qualquer coisinha que pendulasse para sua direção poderia ter modificado o resultado.
O Facebook e outras empresas Bummer estão se tornando o ransomware da atenção humana. Eles têm tanto controle sobre a atenção de tanta gente e por tanto tempo do dia que se tornaram os guardiões do cérebro.
A situação me lembra a prática medieval das indulgências, em que a Igreja Católica da época às vezes exigia dinheiro para uma alma entrar no céu. As indulgências foram uma das principais reclamações que motivaram a separação dos protestantes. É como se o Facebook estivesse dizendo: "Pague-nos ou você não existe."
É o início de uma máfia existencial.


BLACK LIVES MATTER
Depois que a política norte-americana perpetrou uma série de mortes horríveis de cidadãos negros desarmados, a reação de usuários sensibilizados das redes sociais, em sua maior parte, começou de maneira sábia, estoica e construtiva. É preciso dizer que, sem as redes sociais, correríamos o risco de nem sequer ouvir falar sobre essas mortes, sua prevalência ou suas similaridades.
De início, as redes sociais engendraram um sentido universal de comunidade. O slogan "Black Lives Matter" [Vidas Negras Importam] me pareceu no começo incrivelmente astuto e cuidadoso, por exemplo. Não uma maldição nem uma pancada, apenas um lembrete: nossos filhos importam. Suspeito de que muitas pessoas tiveram a mesma impressão, embora muitas delas viessem a ridicularizar o slogan não muito tempo depois.
"Black Lives Matter" apareceu e ganhou proeminência durante a típica fase da lua de mel do ativismo Bummer, e, como sempre, essa fase inicial foi promissora e parecia substancial. A máquina estava dando aos ativistas negros um canal de influência e poder. Mais dinheiro e poder para as empresas Bummer, é claro, mas também mais empoderamento para novos exércitos de usuários da Bummer. os dois lados saem ganhando, certo?
No entanto, durante essa mesma lua de mel, um jogo de poder mais profundo e mais influente estava sendo armado nos bastidores. O jogo que mais importava não estava à vista, ocorrendo na maquinaria algorítmica de imensos centros de dados ocultos espalhados pelo mundo.
Ativistas negros e simpatizantes foram cuidadosamente catalogados e estudados. Que palavras os estimulavam? O que os irritava? Que histórias, vídeos - qualquer coisa - mantinham-nos grudados na Bummer? O que os tornaria flocos de neve para isolados, pouco a pouco, do restante da sociedade? O que os levou a se tornarem mais sujeitos a mensagens de mudanças comportamentais com o passar do tempo? O propósito não era reprimir o movimento, mas ganhar dinheiro. O processo era automático, rotineiro, estéril e implacável.
Nesse meio-tempo, automaticamente, testou-se a capacidade de o ativismo negro preocupar, perturbar e até mesmo cativar outras populações, que foram elas próprias catalogadas e estudadas em seguida. Uma fatia inativa de supremacistas brancos e racistas que antes não eram bem identificados, conectados ou que não tinham adquirido poder foi descoberta e cultivada em meio à cegueira da máquina, de início apenas para ganhos comerciais automáticos, inconscientes - mas isso teria sido impossível sem primeiro cultivar uma fatia do ativismo negro da Bummer e calcular de modo algorítmico como enquadrá-la como uma provocação.
Por sua natureza, a Bummer foi aos poucos separando as pessoas em blocos e promovendo babacas, antes que os russos ou qualquer outro cliente aparecessem para tirar vantagem. Quando apareceram, os russos se beneficiaram de uma interface de usuário projetada para ajudar "anunciantes" a se dirigir a populações com mensagens testadas para ganhar atenção. Tudo o que os agentes russos precisaram fazer foi pagar à Bummer pelo que a máquina já fazia naturalmente.
O "Black Lives Matter" se tornou mais proeminente como provocação e objeto de zombaria do que como um grito por ajuda. Qualquer mensagem pode ser forjada para incitar uma determinada população se vândalos virtuais seguirem a tendência dos algoritmos.
Pouco a pouco, o racismo adquiriu na Bummer um grau de organização sem precedentes nas últimas gerações.
Quisera eu não ser obrigado a reconhecer esse desgosto. Grande parte do que acontece em um nível de usuário para usuário na Bummer é maravilhoso, desde que olhemos para isso e ao mesmo tempo ignoremos o quadro mais geral em que as pessoas estão sendo manipuladas pela Bummer. Para quem consegue traçar uma moldura pequena o bastante de modo a incluir apenas as coisas das quais as pessoas estão diretamente conscientes na máquina, isso vai parecer um arranjo excelente.
O Black Twitter é um ótimo exemplo. Trata-se de um meio e uma literatura distintos por si sós. É maravilhosamente invertido e expressivo. E virtuoso. O Black Twitter é muito melhor do que Trump, como se viu depois que diversos jogadores negros da NFL se ajoelharam durante a execução do hino nacional. Enquanto isso, as coisas fora da moldura de consciência do usuário são totalmente direcionadas a manter a subordinação do Black Twitter e a diminuir seu poder.
Quero celebrar o Black Twitter porque ele é brilhante. Mas preciso observar que é uma armadilha cruel. Espera-se que algum dia venha a existir algo semelhante ao Black Twitter dia venha a existir algo semelhante ao Black Twitter que não seja subserviente à Bummer e não seja criado para estudar secretamente as pessoas a fim de manipulá-las.
Quero estar errado sobre tudo isso, mas até agora a Bummer parece cada vez pior quanto mais se revela.
Um ano depois da eleição, a verdade começou a vazar. Constatou-se que algumas contas de ativistas "negros" proeminentes eram, na realidade, frentes falsas para uma guerra de informação russa. O propósito russo aparentemente era irritar ativistas negros a ponto de reduzir o entusiasmo para votar em Hillary. Suprimir o voto, estatisticamente.
Isso não significa que os russos tenham posto pensamentos na cabeça das pessoas de maneira clara ou consciente. Não significa que os indivíduos que foram alvo dessas campanhas tenham sido menos atentos, menos inteligentes ou menos determinados do que quaisquer outros. A maior parte do que aconteceu foi provavelmente a promoção "discriminada" do cinismo, uma atitude desdenhosa e uma sensação de desesperança ("discriminada" se refere a uma maneira sorrateira com que os bancos dos Estados Unidos historicamente induziram os algoritmos da credibilidade para crédito a fim de desfavorecer bairros negros). Não estou dizendo que as críticas a Hillary eram inválidas, ou que o eleitor era desinformado; o que quero dizer é que a emoção do eleitor foi ajustada só um pouquinho, o suficiente para aumentar o número de abstenções.
Não esqueça que o Facebook já publicou com estardalhaço uma pesquisa provando que a plataforma pode mudar o comparecimento às urnas. (126) Na pesquisa, o Facebook usou o alegre exemplo de estimular o comparecimento nos dias de votação. Mas, como tudo no Facebook se trata de direcionar e como a plataforma é capaz de calcular a afiliação política do usuário, entre muitas outras coisas, e como ela também já mostrou que consegue deixar as pessoas tristes, é provável que as redes sociais também possam ser usadas para suprimir eleitores visados por causa do modo provável que eles tendem a votar.
Nada disso implica que o Facebook prefere um tipo ou outro de eleitor. Isso depende dos clientes da plataforma, que não são vocês, os usuários. O Facebook não necessariamente sabe o que está acontecendo. Uma rede social está em posição mais vantajosa quando não sabe o que está acontecendo, porque assim ela ganha muto mais dinheiro e lida com menos culpa.
Jamais saberemos quais foram os testes algorítmicos feitos tanto pela abstenção quanto pela participação do eleitor em qualquer eleição específica, ou quais foram as lições aprendidas. Talvez certas palavas nos títulos, ou a substituição de certos anúncios adjacentes a determinadas notícias sobre celebridades, tenham melhorado as chances de deixar uma pessoa irritadiça, mas só se ela gostar de certos carros, por exemplo.
Tudo o que podemos supor é que uma empresa estatisticamente direcionada fez contínuas adaptações para otimizar seu desempenho.
Nem a Bummer nem os agentes russos precisavam se importar com o ativismo negro, de um jeito ou de outro. (Por acaso, indivíduos que trabalham em empresas são, em sua maioria, simpáticos ao ativismo negro, mas isso é de uma total irrelevância para o efeito deles sobre o mundo quando se adere ao modelo de negócio de manipulação em massa.)
A Bummer ganha mais dinheiro quando as pessoas estão irritadas, obcecadas, divididas e com raiva - e isso serviu perfeitamente aos interesses russos. A Bummer é uma fábrica de merda, transformando organizações sinceras em rupturas cínicas. É, em sua essência, uma trapaça cruel.
Ativistas negros têm todos os motivos para se sentir bem em relação a suas interações imediatamente perceptíveis na Bummer; nesse nível, há beleza e profundidade genuínas. Afinal, esse outro jogo nos bastidores não invalida o que é visível. Observar o panorama mais amplo só faz diferença quando observamos e entendemos os resultados finais.
Ativistas podem se sentir confiantes de que estão transmitindo sua mensagem, mas é incontestável que os ativistas negros sofreram sérias perdas de terreno nas esferas política e material e de todas as maneiras que importam fora da Bummer.
Como de hábito, após uma catástrofe induzida por algoritmo, muitas pessoas que foram traídas e usadas continuam a elogiar a Bummer;
Na eleição americana de 2016 foi uma conta chamada Blackativist, mantida pelos russos. Um ano depois das eleições, o verdadeiro poder por trás de Blackativist foi revelado e repórteres perguntaram a ativistas negros o que eles achavam disso. Alguns, felizmente, ainda se ultrajavam. Consta que um ativista respondeu: "Eles estão usando a nossa dor para o ganho deles. Estou profundamente indignado." Trata-se de uma declaração bem informada, razoável e corajosa, porque não é fácil aceitar ter sido enganado.
As pessoas tendem a racionalizar. Por exemplo, um advogado de direitos civis disse ao mesmo repórter: "Se alguém está organizando um evento que beneficia a responsabilidade e a justiça, não me importa quais são os seus motivos ou quem ele é." É uma racionalização típica de alguém que não olha para além da experiência familiar, em direção ao quadro mais geral onde o jogo da Bummer é disputado.
No fim das contas, o lucro da Bummer levou as redes sociais negras a elevarem, sem querer, uma nova ferramenta otimizada para a abstenção de eleitores. Como se já não houvesse ferramentas de supressão de eleitores suficientes lá. Como se o estabelecimento de distritos eleitorais que favorecem determinados candidatos, os postos de votação inacessíveis e as regras de registro tendenciosas não fossem suficientes.
Incutiu-se em muitos potenciais eleitores um sentimento não muito bom a respeito de Hillary Clinton ou de votar. Você foi um deles? Se foi, por favor, relembre. Viu alguma informação customizada para você antes da eleição? Usou o Twitter ou o Facebook? Fez muitas buscas on-line?
Você foi iludido. Enganado. Suas melhores intenções foram usadas contra você.



SE PELO MENOS ESSE JOGO JÁ TIVESSE ACABADO
Mesmo que a atmosfera de hoje em dia - esse inferno de insultos e mentiras - tenha começado a parecer normal, não era assim antes. Eu me preocupo com os jovens que estão crescendo nessa bagunça e acreditando que as coisas sempre foram dessa forma.
Enquanto escrevo este livro, surgiu um novo movimento social conhecido como #metoo, anunciando uma rejeição ao assédio sexual de mulheres. Os algoritmos da Bummer estão devorando tudo sobre o #metoo no exato momento em que digito. Como isso pode ser transformado em combustível para dar a algum imbecil, em algum lugar, o poder de perturbar alguém para que todos sejam mais engajados/manipulados? Como os ativistas serão incitados a se tornar menos solidários? Que possibilidades serão descobertas por manipuladores/anunciantes que estão peneirando/pescando maneiras de arruinar o mundo?