sexta-feira, 19 de julho de 2024

Profissionais de saúde fazendo dancinha



Eu tenho uma amiga nutricionista que durante muitos anos alimentava um perfil no instagram. Era uma pessoa bem ativa e acreditava ser inadmissível deletar sua conta, o trabalho dela dependia muito daquilo. Assim, a rotina dela como profissional era colocar em seu planner os assuntos que ela postaria, reels, stories e carrossel de fotos.

Quando algum boçal aleatório criava polêmica falando algo de errado sobre nutrição, lá estava minha amiga para desmentir, como diversos de seus colegas que se formaram e levavam ciência a sério. Os vídeos davam muita visualização e ela sempre conseguia novos clientes. Fazia lives com outros influencers de mesma profissão e assim um divulgava o outro e tratavam de assuntos conforme suas especialidades.

Mas um dia, algo deu errado e a saúde mental da minha amiga colapsou. Ela teve um burnout bem feio, precisou ser medicalizada. Ela ficou pensativa sobre o que havia de tão errado assim, já que levava uma vida muito tranquila, ia cedo para o consultório, atendia, às vezes passava do horário, mas nada que a deixasse cansada demais, ela sabia lidar bem com isso. Ela estuda bastante, é verdade, mas isso nunca foi um grande problema, ela gosta do que faz. O que havia de errado? 

Minha amiga trabalhava muito em suas redes sociais e de graça. Isso a fazia acumular mais seguidores que clientes. É bem verdade que a agenda dela ficava cheia, mas isso, de acordo com ela, não se diferenciava muito do que ela fazia antes de ter uma conta no instagram. 

A informação que ela lançava atingia lá uma grande quantidade de visualizações, mas isso tinha um custo porque quem curtia recebia conteúdos não só dela, mas ligados aos assuntos que ela tratava. Ou seja, ela contribuía pra inflar a bolha algorítmica para que o instagram leiloe publicidades. Ela estava trabalhando de graça para o instagram aprender e gerar conteúdos para os usuários que nem eram dela. Então ela tomou uma dura decisão que foi deixar o instagram e alimentar o seu site pessoal. Ela ficou surpresa porque não mudou muita coisa. Ela não precisa mais trabalhar de graça e nem fazer dancinha pra alavancar seguidores, só precisa pagar um anúncio que o google encaminha seu site por região.

Ela reclamava muito da carga emocional que certas coisas traziam a ela. Um exemplo disso é quando algum desocupado charlatão fala besteira e os profissionais sérios o desmente. Eu penso: isso nunca vai parar? Sempre vai ter um maluco falando bobagens sobre alguma coisa científica e um profissional estará de prontidão pra desmentir (e vai perder)? Mas se estamos falando de rede social, esse tipo de atitude vale a pena e quando minha amiga fazia isso, muita gente não gostava e fazia comentários que, como sabemos, pessoalmente não teriam coragem. Por mais que a gente tenha sangue pra aguentar, nem sempre essas coisas passam despercebido e podem nos deixar abalados em algum nível.

Mas quem decide ser amigável com você apenas por ética? Quando se trata de rede social, a polêmica e o engajamento vale muito e isso seguramente levará dinheiro e publicidade aos envolvidos. Se me perguntam se tenho algo contra que um profissional formado faça dancinha, eu vou dizer que não. É evidente que as pessoas fazem o que bem entendem de suas vidas e com seus diplomas. Mas é preciso também sempre pensar e muito os custos disso no presente e no futuro. Você realmente precisa mesmo se submeter ao que um algoritmo quer pra ganhar dinheiro? Acho que a parada de lutar por condições mais dignas de trabalho é muito mais válido.

De repente todo mundo aceita que essas big techs tenham o monopólio de toda a comunicação, acreditam que é indispensável não ter rede social e quando tem, sabem que os conteúdos que mais geram visualizações são aqueles que contém polêmica, dancinha, brigas e por aí vai.

Eu já abandonei cursar em locais que não te dão escolhas e jogam na sua cara que se você não tiver rede social, não vai saber o que está acontecendo. Já parei de praticar Muai Thay em uma determinada academia porque eu não tenho conta no Instagram e era o único meio que eles davam de saber dos horários e avisos de quando não haveria aula. Sempre publicavam nos stories deles e eu não preciso passar por esse tipo de estresse.

Às vezes precisamos sair um pouco da conveniência para não virarmos escravos dos desejos de um. Quem sabe o que ganho escrevendo um blog que sei que quase ninguém lê. Mas eu tenho fé que no futuro as coisas podem sempre mudar e nós encontraremos uma saída.

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